Reflexões sobre o I Ciclo de Formação do Cursinho Livre da Lapa (ou sobre como o pessoal também impo
Durante o mês de agosto de 2015, aconteceu na Casa Mafalda, o I Ciclo de Formação do Cursinho Livre da Lapa. Os encontros aconteceram em quatro noites (alternadas entre quarta e terças feiras) e sobre estes traço algumas considerações.
A primeira consideração que me ocorre diz respeito à riqueza do ciclo e o dedicação dos educadores envolvidos no processo de organização e participação deste. Posto que este é o primeiro ano do Cursinho Livre da Lapa e que este grupo de pessoas pouco se conhecia há um ano atrás, o engajamento no ciclo, aparece como um sinal de entusiasmo com o projeto em si e isso se refletiu também nos debates. No primeiro dia do ciclo (05-08), nossa convidada foi a Marina Mauymi que veio nos contar sua experiência nos Bachilleratos populares na Argentina. Ela leciona português e artes na Escuela Libre de Constituicón (na região metropolitana de Buenos Aires). Os Bachilleratos na Argentina são regulamentados pelo Ministério da Educação, o que garante certificação ao final do curso. No caso da escola na qual Mayumi leciona isso torna-se fundamental para a manutenção de estudantes, mas não atrapalha (às vezes até garante) a autonomia das aulas. Ali se preza por uma educação não hierárquica (nem entre educadores, nem entre educadores e estudantes). A estrutura de organização é feita por reuniões pedagógicas, assembleias nas quais estudantes também participam. As aulas são pensadas por duplas pedagógicas (para garantir uma pluralidade de olhares sobre o mesmo assunto). Na escola não existe a figura de um diretor e eles se organizam de maneira autônoma no espaço onde também se organiza a FLA (Federação Libertaria Argentina) e isso implica em também pagar o aluguel do espaço fazendo festas, eventos e os educadores também contribuem financeiramente com o que podem por mês. Os educadores trabalham em outros lugares e não ganham nada para lecionar na Escuela Libre de Constituición. O projeto é construído de maneira bem horizontal, não existe uma avaliação formal, exitem avaliações coletivas. Ao final desta fala, o debate nos mostrou muitas aproximações entre o nosso projeto e o dela. Começamos a pensar em quais são os limites da nossa atuação pedagógica na medida em que os egressos escolhem caminhos para suas vidas profissionais distintos dos quais nós acreditamos. Pensamos que parte disso pode estar ligado também à autonomia, já que é isso que estamos buscando nesse tipo de educação. Pensamos também que escolhas profissionais muitas vezes esbarram em limitações socio-economicas e que isso está fora do nosso alcance no final das contas. Mas podendo contribuir para uma visão de mundo distinta do satus quo talvez seja o bastante. No segundo encontro (11-08) o Rodrigo Rosa da Biblioteca Terra Livre falou sobre experiências em educação libertária e da experiência das Escolas Modernas. Sua fala, além de apresentar princípios da educação anarquista, nos trouxe questões como: estar dentro do sistema educacional ou criar novas escolas? Qual o papel social da escola? Num projeto anarquista, a escola faz parte de todo o processo revolucionário, isso implica numa escola necessariamente livre, autogerida e laica, com saídas de campo para se conhecer o entorno, que preze o desenvolvimento e autonomia das crianças (ou estudantes de maneira geral) e relações mais horizontais entre estudantes e educadores. Para um projeto assim acontecer é necessário que se consiga garantir autogestão pedagógica, econômica e política. Atualmente existe uma escola que se tenha notícia - a Paideia, na Espanha - que consegue garantir sua autogestão em todos esses aspectos e que se considera anarquista. Rodrigo apresentou alguns exemplos de escolas anarquistas que funcionaram em algum momento da história e apresentou os fundamentos da escola moderna, pensados por Ferrer. Estes fundamentos baseiam-se na colaboração, na observação e na experiência, na ausência de prêmios e castigos (o que desestimula a competição entre estudantes), a ausência de seriação e avaliações, a ideia de co-educação, pois no processo educativo enquanto educadores aprendemos o tempo inteiro. Além de colocar o estudante não no papel de receptor do conhecimento, mas de autor da própria aprendizagem. Durante o debate surgiu a questão sobre como abrir uma escola nesses parâmetros. Quais são os limites legais para isso? Concluímos que diante da nossa legislação talvez não fosse possível, pois certamente esbarraríamos em alguma limitação (econômica ou política provavelmente, já que a LDB garante autonomia pedagógica ao menos). Mas, ao reunir no mesmo lugar, numa terça feira à noite, um número grande de pessoas interessadas em pensar num projeto de educação realmente autônomo, se faz notar a urgência da criação de espaços onde caibam essas discussões. O terceiro encontro (19-05) foi com o João Branco, discutindo o levante de professores em Oaxaca, no México em 2006. Sua fala trouxe inúmeros aspectos que dialogam com os outros dois encontros e vão além. Ele contextualizou o levante de Oaxaca e pontuou que no México, a ideia de revolução vem geralmente acompanhada da luta dos povos por continuar vivendo suas tradições e criticou o fato do termo revolução ter sido apropriado por setores da esquerda que disputam a tomada do poder. Mas, refletiu, não é necessário tomar o poder. Em Oaxaca isso faz todo o sentido. Depois de uma grave de professores que foi fortemente apoiada pela população local a região se transformou numa comuna autogestionada e durante este levante, que durou seis meses, a comunidade passou a se organizar como os indígenas (maioria da população da região). Segundo João, no filme “Un poquito de tanta verdad”, que mostra o panorama político do levante, os educadores perceberam que as barricadas foram “a expressão máxima de um processo educativo”, uma vez que não seria possível mais, a partir do levante, escola e vida comunitária estarem dissociadas. Sendo aquela, uma continuação desta e não um rompimento. Neste sentido, o processo educativo é um processo coletivo, social. A partir dali a importância para a cultura dos povos originários só aumentou no processo educativo e isso nos coloca luz sobre o que entendemos por educação ocidental (que João classificou como políticas de terror), pois que costuma ser “etnocida”, “culturicida”, já que arruína a auto-estima dos povos e coloca seus saberes como de segunda ordem, ao colonizar a vida material e seu imaginário, inclusive sobre si mesmos. O último encontro (25-08) foi destinado para nós apresentarmos nossa experiência no Cursinho Livre da Lapa. Dividimos nossa fala em: histórico, como tem sido esse processo do ponto de vista dos educadores e das estudantes. Eu e a Elo falamos um pouco sobre o processo da Casa Mafalda começando a se entender como espaço educativo: não é isso, no fundo, um espaço autônomo? E sobre como pensar no cursinho foi pensar com os estudantes desde o início. A ideia do fazer junto nasceu com o projeto, ou o projeto nasceu dela? Não sabemos. Está tudo muito imbricado agora. Além disso, ou justamente por isso, nesse projeto cabe o desajuste, cabem aqueles que não se adequam na escola tradicional. Juninho pontuou que pra ele o cursinho é encarado como um processo de formação política, que propõe uma relação diferente com o ensino e a relação forma-conteúdo das aulas também é outra. Este é um espaço de formação para os educadores também. Zé concordou e acrescentou que a forma como fazemos as coisas ali são tão diferentes, que muitas vezes é difícil. Pois não estamos acostumados a lidar com os próprios problemas sem que um “adulto” resolva, por isso a resolução de problemas ainda acaba muitas vezes recaindo sobre os educadores. Giovana colocou que para ela a relação horizontal e próxima com os educadores e a percepção de que as aulas e questões pertinentes ao cursinho são realmente pensadas em conjunto com os estudantes são os fatores mais importantes a serem destacados. Virgínia colocou como fundamental o não estímulo à competição que se tem nos cursinhos tradicionais, concordou com a Giovana em relação à construção coletiva das aulas ser um ponto fundamental no processo, além de chamar atenção para as saídas de campo que ela achou que complementaram os conteúdos das aulas. Ela ressaltou também a importância do respeito que se tem pelos indivíduos neste espaço e de como tem aprendido a respeitar o próprio tempo no que diz respeito ao vestibular: sem crises, sem cobranças, quando tiver que ser, será! Rafa trouxe também um relato sobre como se aproximou do cursinho e sentiu ali em espaço de liberdade. Ele contou que no ensino formal ele se sentia culpado por não aprender, mas, disse, “aqui eu aprendo, aqui a gente troca, aqui é um lugar que agrega na minha vida”. Pra ele aquele lugar é um experimento da liberdade, de acolhimento, de experiência que transforma. As falas tanto dos educadores, como - e principalmente - das estudantes refletiu de alguma maneira questões que apareceram nas falas dos convidados dos encontros anteriores: a ideia de horizontalidade nas relações, de construção coletiva, de existir de fato possibilidades para outro tipo de educação e que ela pode funcionar.
Assim, com sucessivos relatos pessoais o debate seguiu e todos sempre pontuavam que o relato seria pessoal, como se isso fosse um problema. Foi o Danilo Mandioca que ponderou: ali o pessoal, o individual é importante. Pra gente importa quem é cada um, quais as vontades e as dificuldades, os medos. Os relatos pessoais são importantes ali, porque fora eles não são. Fora eles são tolices, fora cada indivíduo não passa de um número e dependendo de onde esse “número” morar, dependendo da classe social, da cor da pele ele vira uma estatística. E a maioria dos nossos estudantes são passíveis de entrar pras estastíticas. No mundo que a gente quer construir os indivíduos, são, antes de tudo. Eles tem rosto, tem nome, vontades.
E claro, como pontuo o Juninho depois, ali, com aquele pequeno número de pessoas somos exclusivos. Somos poucos.É preciso voltar à pergunta feita pelo Rodrigo Rosa e reiterada pelo próprio Juninho: como estar dentro do sistema educacional e fazer diferente? Como transformar a educação formal caminhando na direção que a gente acredita? Como garantir que a educação pública seja de fato transformadora? Como transformar nossas relações com a educação para fazer do viver uma experiência de educação integral e coletiva?
Luara Carvalho - educadora da área de história do Cursinho Livre da Lapa
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