Pedagogia libertária, construção política e estratégias de resolução de conflitos no Cursinho Livre
O Cursinho Livre da Lapa (CLL) é um projeto de educação libertária que visa o acesso de estudantes de escolas públicas às universidades públicas que acontece na Casa Mafalda, espaço autônomo libertário localizado na Lapa, em São Paulo. É um coletivo formado por pessoas de diferentes linhas ideológicas, que partem de princípios como autonomia e horizontalidade na tentativa de promover uma experiência de educação transformadora. Por ser um grupo extremamente heterogêneo, acolher a diversidade mostrou-se parte dos incontestáveis desafios de uma educação que se propõe diferente da hegemônica. Por outro lado, sabia-se que seriam encontrados obstáculos na convivência das diferenças. Foi para romper esses obstáculos que diversas instâncias políticas de decisão foram criadas ao longo deste primeiro ano de experiência do cursinho.
Imaginou-se que possivelmente surgiriam questões relativas a gênero (inclusive entre educadores e educadoras), por exemplo, quando deu-se prioridade a mulheres na matrícula. Formou-se então um grupo de discussão de gênero entre as mulheres - tanto estudantes, quanto educadoras - para que tais questões fossem colocadas, discutidas e em seguida levadas para o interior do grupo misto para tentar resolvê-las. Poucas questões surgiram e, ao final, o grupo de mulheres acabou crescendo e saindo da esfera do CLL.
Ao mesmo tempo, muitas estudantes apresentaram dificuldades para pagar o transporte de casa ou da escola até o CLL. As próprias estudantes engajadas e autônomas decidiram organizar festas e saraus para arrecadar dinheiro para o pagamento do transporte, enquanto uma campanha de crowdfunding - que entre outras coisas teria essa finalidade - não se concretizasse.
No decorrer do processo, entretanto, foi possível notar que questões das mais diversas possíveis, para além de gênero e sobrevivência material do projeto, surgiam e não eram resolvidas. Essas questões apareciam de maneira descuidada e informal, fazendo com que as propostas de resolução não se mostrassem tão eficazes. Inúmeras vezes educadoras e educadores se colocaram abertamente ao diálogo, o que não foi o bastante. Notou-se que mostrar abertura para ajudar a resolver os problemas não necessariamente faz com que o outro sinta-se à vontade para questionar, para se colocar ou apresentar críticas, sejam educadores, educadoras ou estudantes. Por isso, sentiu-se a necessidade de criar outros canais e mecanismos de diálogo e resolução de conflitos para que de fato as coisas fossem ditas e de alguma forma os ruídos fossem diminuindo ao longo do tempo.
Surgiram assim dois novos meios de lidar com os problemas. O primeiro deles é a caixinha de sugestões, canal anônimo para quem não se sente confortável em falar abertamente. O outro meio é a Comissão de Mediação Pedagógica, que tem como finalidade a partilha de dificuldades e o diálogo como caminho para se tentar superar os conflitos. Mesmo com a criação desta Comissão, fez-se necessário reiterar a crença na resolução de conflitos cara a cara, que a Comissão era apenas um canal de auxílio no que tange problemas, mas que o ideal seria que ela não existisse. Como um suspiro aliviado, ao nascer a comissão, questões começaram a aparecer. Ao se deparar com o que era dito ou escrito, a Comissão procurou as partes envolvidas na tentativa de conversar com elas. As questões sempre foram colocadas como políticas, na tentativa de não personalizar nenhum problema numa pessoa ou em outra, sempre entendendo que as questões pedagógicas devem ser tratadas de maneira ampla evitando desgastes emocionais e desentendimentos.
Em setembro, surgiu uma denúncia aberta de machismo e racismo em uma página de divulgação de um show de apoio à já citada campanha de crowdfunding. A denúncia foi feita por uma mulher negra contra um homem branco de uma das bandas que tocariam nesse evento. Ela e ele nunca fizeram parte do cursinho, e o CLL só passou a ter relação com o episódio a partir do momento em que a denúncia foi feita na página do evento da campanha. Enquanto o CLL se mobilizava diante da denúncia e tentava entendê-la para propor algum encaminhamento (com as mulheres do cursinho indo encontrar a denunciante para ouvi-la) a banda retirou-se do evento. Em uma reunião de mulheres do CLL na Casa Mafalda, marcada para mediar a denúncia, uma educadora cobrou politicamente uma estudante com relação a uma postura que esta havia tomado numa outra ocasião. A estudante, ao se sentir desconfortável com a situação, buscou amparo entre amigas de fora do cursinho. Em seguida, na mesma noite, três delas se dirigiram à Casa Mafalda, interromperam uma reunião mista e, sentindo a cobrança feita como uma agressão racista, agrediram fisica e verbalmente a educadora. Diante desse novo problema, foi marcada uma nova reunião, agora com os coletivos das três amigas da estudante e os coletivos da educadora. Os objetivos dessa reunião foram expor os fatos, debatê-los politicamente e buscar, pelo diálogo, maneiras de garantir que novas opressões e agressões não fossem cometidas.
Tanto durante o processo de mediação em que surgiu a denúncia de agressões machista e racista, quanto na busca por um entendimento entre as partes envolvidas na nova acusação racista e na agressão física e verbal, nós, educadoras, educadores e estudantes do CLL, buscamos tratar todas as decisões políticas como prioritárias e anteriores a relações de ordem pessoal. Acreditamos que as relações de poder, por serem social e historicamente construídas, trazem em si práticas opressoras, as quais podem ser reconhecidas e enfrentadas de forma coletiva, horizontal e sem personificar problemas. Quando tais problemas decorrem de um projeto libertário-pedagógico como o CLL, é fundamental que sejam encarados de um ponto de vista não só político, mas também pedagógico - nunca pessoal.
Não temos a intenção de esconder a acusação de racismo. Estamos em pleno processo de discussão sobre ela, pois cabe a nós essa responsabilidade. Também não podemos esconder as consequências do que aconteceu até o momento: depois das acusações e agressões, militantes se afastaram de coletivos, algumas estudantes abandonaram as aulas, houve desentendimentos entre esses coletivos. Estes, entre outros elementos, desarticulam as lutas contra opressões. Neste momento, temos um grande ônus a ser encarado seriamente, que são estes afastamentos de mulheres negras, brancas e estudantes de escola pública dos espaços políticos. E nos fica a pergunta: quem ganha com isso?
Nossa proposta política é de diálogo no sentido de construir relações libertárias com pessoas que tenham a mesma intenção; nossa ideia não é conciliar classes, raças, sexualidades, gêneros e usar um pretenso purismo ideológico como cortina para opressões que tem sido sistematicamente minimizadas nos mais diversos contextos e que poderiam estar sendo reproduzidas em nosso coletivo. Nossa intenção é o avanço de uma discussão política que não se limite a apontar as diferenças, mas busque a criação coletiva de mecanismos que impeçam que tais diferenças justifiquem velhas e novas formas de dominação de qualquer pessoa sobre outras. Seremos incapazes de avançar nessa discussão se não estabelecermos parcerias com outros coletivos. Acreditamos que a criação de canais de diálogo para ouvir e denunciar incômodos e agressões contribuem no processo de superação das opressões. Todas elas. Nesse sentido, negar o diálogo como forma primeira de resolver atritos é minar as possibilidades de nos revermos e continuarmos construindo junto.
Nós não abriremos mão do objetivo ao qual o CLL tem se proposto desde sua origem: a construção política coletiva que tenha em seu horizonte uma transformação social integral.
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